sexta-feira, 29 de junho de 2012

A Casa de Virgínia Ortega


Estou diante do velho sobrado verde. É um daqueles sobrados tardios e estreitos, pequenos demais para ser transformado em estacionamento. A fachada suja e os cartazes nunca arrancados dão ao lugar uma aura de pobreza e decadência. Um telhado de quatro águas coroa o edifício anacrônico.

***

Aqui eu me refugiei com Mauro e Virgínia nos primeiros dias. Foram semanas perturbadoras na companhia daquele casal, mas o balcão do andar superior oferecia uma visão segura da rua, o que, na época, parecia uma grande vantagem. No primeiro andar, funcionava uma tabacaria centenária - o que encerrava a questão para mim.  Claro, eu tinha que pagar pelo aluguel, mas isso não era o problema. Os problemas começaram depois.

Mauro era um motorista há poucas semanas da aposentadoria quando o mundo veio abaixo, e não havia um único dia que o escroto não reclamava desse infortúnio. Passava as horas fumando, cheirando, tomando arrebite, e bebendo qualquer porcaria que eu trazia nas minhas primeiras expedições. Quando isso não era suficiente para afogar o seu tédio, espancava Virgínia, e depois ia chorar escondido no banheiro se lamentando pela merda de vida que sempre levou. Fora isso, até que era um cara legal - se aprendi alguma coisa na cadeia é que um homem nunca deve julgar seus companheiros de cela.

Mas Virgínia Ortega era uma mulher incrível, e, de certa forma, as bofetadas de Mauro mal afetavam sua aura de rochedo. Apanhava calada, e, aos  poucos, entendi que essa era sua forma de fodê-lo. Não importava o quanto as nossas condições estavam se degenerando, ela mal mudava de expressão. Com a cara arrebentada, ainda parecia uma rainha, e conseguia manter uma calma inabalável no meio daquela merda toda. Se alguém podia manter a sanidade em meio a loucura que nos devastou naqueles primeiros meses, Virgínia Ortega era essa mulher. E eu voltei lá por causa dela.

Quando jovem, Virgínia dedicou-se ao estudo de línguas orientais e literatura comparada. Tinha um acervo impressionante de literatura védica, além e várias obras sobre a cabalah - inclusive um manuscrito rabínico original do século XVI, que era o orgulho de sua rara biblioteca. Podia citar de cabeça tudo o que lera na vida, e ela lia pra caralho, mesmo depois desta merda acontecer. Na verdade, ela tinha um livro que me interessava em particular.

Ok, eu não voltei aqui só para salvá-la. Eu tenho vários motivos.

Havia cigarros. Centenas de maços.

***

Assovio da forma que me foi ensinada. Dois assovios longos, um assovio curto. Depois, duas pancadas na porta.

Nada.

Ninguém atende. Ninguém aparece no balcão. Decido entrar mesmo assim.

A porta da loja está barrada por dentro. Tenho que pular o portão lateral: apesar de estreito e cheio de pontas, a grade não é tão alta.  Adentro a servidão de  passagem que dá acesso à porta dos fundos e ao antigo cortiço que ficava no alto do morro atrás do sobrado. É um corredor escuro e cheio de lodo, que termina em uma escadaria escavada no barro. No muro, eu reconheço um dos símbolos de Virgínia traçado com giz de sinuca. Um arrepio desce pela minha espinha.

  30:90
[este lugar é MUITO perigoso. retorne por onde veio AGORA!]

O céu continua se enchendo de fumaça negra, que felizmente vai na direção oposta à minha localização. Se o vento não mudar, terei algumas horas para tirá-los daqui e encontrar um refúgio seguro antes de escurecer. Vai ser uma longa jornada, e ainda terei que convence-los a deixar o refúgio - algo que jamais consegui fazer, apesar de ter insistido por mais de uma semana. Que se foda. Não posso simplesmente por fogo na cidade e ir embora sem pelo menos avisá-los que vão torrar até os ossos se ficarem aqui.

A porta dos fundos está barrada pelo lado de fora, com várias tábuas meticulosamente pregadas ao batente. Começo a desconfiar que eles não estão mais aí dentro, e, se foram embora, não deixaram o refúgio às pressas... Um arrepio atravessa minha nuca. Meu instinto me obriga ao silêncio. Há uma janela de madeira no andar de cima. Tenho que alcançá-la.

Tiro minhas meias imundas e amarro na alça da valise. Prendo-a no cinto.

[nota mental: preciso de uma mochila que nao seja uma merda, como a última. A sobrevivência nos dias de hoje é um trabalho para profissionais. Não posso mais ficar carregando uma mala de mão por aí como se estivesse de férias.]

Com cuidado, coloco um pé na parede da casa, e o outro no muro cheio de lodo. Faço o mesmo com as mãos. Subo menos de um metro e me dou conta de que isto não vai prestar. Retorno ao portão e o escalo de novo. Vou ter que caminhar por cima do muro cheio de cacos de vidro. Com o machado em uma das mãos, avanço um passo de cada vez, tentando equilibrar o peso da valise. Piso com cuidado nos espaços vazios deixados pela argamassa deteriorada, e torço para que estes tênis velhos me prestem um último serviço. Agora falta pouco... Mais alguns metros...

A estreita janela de madeira não está barrada. Vejo mais um símbolo riscado com giz azul no canto do parapeito.

 
5391 

[não reconheço este símbolo. sinto o coração pesado e o suor brotando em minhas têmporas]

Não há tempo para hesitação. Com uma das mãos eu me apoio na parede. Com a outra, encaixo o lado pé-de-cabra do machado na fresta da janela. Prendo a respiração por um instante, e forço a entrada onde imagino haver um trinco. Ouço ele estalar e a janela cede.

*Trrriiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiimmmm*

Um despertador metálico dispara nos meus tímpanos quebrando a minha iniciativa, enquanto uma massa compacta de podridão feroz se projeta para fora da janela.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Loja de Conveniências, II

 



 




Fumei o Derby floresta até o filtro.
Ia acender outro, só para matar o maço. Coloco o último cigarro na boca, mas isso traz à tona um pensamento terrível: PRECISO IR ATÉ LÁ!

BUUUMMM!!!

Uma segunda explosão, maior do que a primeira, manda o que sobrou do posto pelos ares. Uma das bombas de gasolina sobe mais alto do que os prédios que estão em volta, como um foguete indo em direção ao céu cheio de fogo e fumaça negra. Uma segunda onda de calor me acerta na cara. Mais janelas se estilhaçam. Os carros amontoados em volta do posto queimam. O fogo se alastra rápido.
Começo a revirar a valise. Meia dúzia de latas, dois sprays, biscoitos esfarelados... Preciso achar a porra do mapa! PRECISO ACH...

Não há mais tempo.

Mais criaturas começam a aparecer. Elas saem dos prédios e cambaleiam a esmo, em todas as direções, até que uma delas vira a cabeça num ângulo absurdo, e começa a subir a rua com os braços levantados. Eu continuo correndo ladeira abaixo de encontro ao monstro, o peso da valise me fazendo correr mais do que minhas pernas, sem poder me desviar. MERDA! Eu não tenho tempo para pensar, mas, mesmo que tivesse, a infinita idiotice que sucede meus arroubos de heroísmo não teria me permitido outra escolha. O desmorto cambaleia na minha direção, e eu vôo em direção às suas garras, acertando a valise naquele horror de órbitas vazias e gengivas podres. Sinto meu pé afundar no torax do desmorto caído. Eu teria continuado meu curso, mas sinto o ar sumindo de repente e algo me puxando com toda a força para trás.
Rolando no chão, sinto o fedor do desmorto sobre mim. Garras apodrecidas prendem meu poncho com uma força extraordinária. Uma boca feroz rasga o cachecol, e eu me vejo cara a cara com a minha morte  - ela tem uma cara comida por vermes e larvas de mosca.

Luta ou fuga? Eu me debato e esmurro às cegas, até que consigo me livrar do poncho e ficar de pé. Tropeço na valise, e me ergo de novo, com a fumaça ardendo nos olhos, a lata de spray em uma das mãos e o isqueiro na outra.

Eu adorava aquele poncho. É foda ter que queimá-lo.


Desço mancando na direção do incêndio. O calor é infernal, e as labaredas de três metros de altura já alcançam o meio da rua. O asfalto cola na sola do tênis, e eu tenho que prender a respiração para passar no meio da fumaça. Meus olhos ardem, minha pele queima, minha perna dói, e acho que quebrei alguma coisa. Mas o derby floresta está quase intacto. Eu o segurei com os dentes.

Dentro das labaredas, eu vejo os vultos das criaturas se contorcendo em agonia. Um corpo carbonizado irrompe da fumaça com a cabeça em chamas... dá alguns passos na minha direção e um último grito de ódio, antes de suas pernas esturricadas se partirem. O monstro está imóvel no chão, com a cabeça ainda queimando e olhando para mim.

Foda-se, Motoqueiro Fantasma.

[...]

Tento me lembrar das ruas e fazer o menor trajeto.  Sempre fui péssimo em orientação, mas com a ajuda do meu mapa e das marcações poderia encontrar o caminho mais curto. Ainda sinto o calor do incêndio que arde há alguns quarteirões daqui, e, sem ninguém para apagar, vai arder por muito tempo ainda. A cidade já era, preciso pegar o que preciso e meter o pé. Faltam mais algumas ruas. As criaturas parecem estar desorientadas, e consigo evitá-las sem muitos problemas. As mais audaciosas dentre elas recebem um jato flamejante na cara e desistem de tentar – elas temem o fogo, e vão aprender a me temer também.
Viro a esquina e estou no lugar que procuro. A porta da loja com os símbolos vermelhos que pixei há mais de um ano... Nem seria preciso consultar o mapa para conferir. Lá está ela. Inconfundível.

domingo, 24 de junho de 2012

Loja de Conveniências

Não me lembro quando foi que deixei de contar os dias e passei a contar as latas de pêssego e de salsicha que ainda me restam. Estou trancado em uma loja de conveniências vazia, saqueada até os alicerces. Acho que foi a segunda idéia mais idiota que tive nos últimos três anos.
Foda-se. Pelo menos deixaram uns maços de Derby.
Risco um fósforo, e a pequena luz cobra seu preço. Uma olhada na cara de um desses putos equivale a um semestre inteiro estudando medicina legal – um espetáculo de lesões corto-contusas e tecidos com diferentes graus de putrefação. Eles socam o vidro com mais força, como se a lembrança do calor revelasse que estou mais vivo do que pareço – a julgar pelo meu reflexo estranhamente magro no vidro. Quando, caralhos, o rigor mortis vai começar a afetar esses putos?

Dou uma tragada que faria Dráuzio Varella corar.
Eles continuam lá fora, batendo com as mãos decrépitas na grossa porta de vidro, com o nome mais escroto que alguém poderia dar a um posto de gasolina. De minha parte, começo a duvidar da “conveniência” de estar trancado aqui, em duvidosa segurança. Enquanto tento dormir, quase desejo que as dobradiças finalmente venham abaixo, e que as criaturas ponham um fim aos meus dias de sobrevivente. Eu me tornaria finalmente um deles. Não somos tão diferentes assim, já que minha vida se resume a comer e esperar a próxima refeição. Pelo menos ainda posso fumar.
Venho pensando nisso. As defesas estão falhando, e talvez não demore muito até me decidir finalmente a me tornar um deles. Ou talvez eles decidam por mim.

Foda-se. Pelo menos ainda tenho pêssegos. E cigarros.
Foda-se mesmo.
Preciso sair daqui.

***
O dia está nascendo, apesar disso não significar porra nenhuma nas minhas atuais circunstâncias. Não sei se é pior olhar ou não olhar pra essas coisas, e no fim das contas me pergunto se o nascer do sol já significou REALMENTE alguma coisa para mim. Não sei a resposta, mas apostaria que não. Mas chega de existencialismo piegas. A natureza me chama
.
Vou cambaleando até a porta de vidro. Lá se foi a última garrafa, e agora preciso mijá-la. Provavelmente os saqueadores - digo, os saqueadores que estiveram aqui antes de mim – pensaram que Jagermeister era alguma péssima marca de desinfetantes que nunca viram nos comerciais. O fato de serem tão imbecis foi determinante para que fossem eles a gemer e cambalear do lado de fora, e não do lado de dentro – hehe. Meu humor começa a melhorar.

Procuro um canto afastado da vidraça para mijar, longe daquelas senhoras semi-decompostas. A presença de uma ordem moral estabelecida nunca chegou a afetar seriamente os meus refinados escrúpulos, e a queda definitiva da civilização, por outro lado, não era exatamente o meu pesadelo pessoal. Por ter elaborado teorias inverossímeis como o “princípio da autonomia” sempre achei Kant um filósofo de merda. Talvez não exatamente de merda, apenas sóbrio demais para compreender o mundo em que viveu, e onde ainda continuo vivo - com algumas diferenças, é verdade, mas nenhuma que o exima de um erro teórico tão grave quanto postular que o homem carrega “em si” uma ordem moral imanente. Kant teria sido um dos primeiros idiotas a morrer quando essa porra toda começou. Se estivesse vivo, é claro.

O caso é que ontem me toquei de que preciso economizar a água da descarga, só para o caso de sobreviver por mais alguns dias – sem falar que exibir meus genitais para uma platéia de defuntos nunca foi exatamente o meu fetiche. De modo que me afasto até um canto, e, tomando cuidado para não mijar no meu próprio poncho, dou uma boa urinada em forma de “smiley” no vidro da parede lateral.

Por algum motivo isso deixou as criaturas muito muito putas. Putas de verdade. 

No início elas permaneceram lá, esmurrando a porta da frente com aquela debilidade persistente que torna as criaturas sem cérebro seres quase invencíveis, repetindo o mesmo movimento sem nunca se cansarem ou se perguntarem o porquê.  Mas assim que o mijo começou a escorrer pela greta no vidro, a mulher desmorta usando um tailleur (que eu estava chamando de “Lady” nos últimos dias) veio cambaleando daquele jeito patético como só um zumbi usando sapatos de salto alto poderia fazer.  Mas quando chegou perto do rastro de mijo, começou a cambalear rápido, e depois rápido pra caralho, de modo que se estabacou com a cara na pocinha amarela que se formava do lado de fora. 

Eu ia começar a rir, mas então ela olhou diretamente para dentro da loja e fez AQUILO.

É o som mais horroroso que já ouvi na vida. É difícil até de lembrar, e mais ainda, de descrever o bizarro som do ar passando pela traquéia dilacerada e cheia de cartilagens apodrecidas de um desmorto. O guinchado hediondo começa a ganhar um volume inconcebível, como uma panela de pressão que vai explodir, e eu tento tampar os meus ouvidos com as duas mãos para não escutar o urro infernal. É uma explosão de puro ódio, que ficou impressa no vidro como se alguém tivesse usando um spray de muco e sangue coagulado. As outras criaturas, que ainda eram só umas seis ou sete do lado de fora da loja, começaram a esmurrar a porta pra valer. Agora esmurravam de verdade, em uma sincronia que eu nunca teria adivinhado ser possível para aquelas carcaças descoordenadas. Quando o urro começou a diminuir eu pude ouvir o vidro trincando perto das dobradiças.

Isso me deixou mais sóbrio do que Kant. Sóbrio pra caralho. Sóbrio o bastante para ver as outras criaturas saindo dos prédios do outro lado da rua. Em alguns segundos eram dezenas de corpos, cambaleando a uma velocidade impressionante e se acumulando em torno da vidraça.

Estou fodido.
Fodido mesmo.
Especialmente agora que sei que não quero me tornar um deles.

***

Meus olhos correm pelas paredes, mas minhas pernas permanecem cravadas no chão. Não consigo parar de tremer – eles são muitos. Estão olhando para mim com as órbitas vazias e os dentes arreganhados, com o ricto da morte nos lábios que já se foram. O vidro não vai resistir, e me dou conta da idiotice que foi permanecer tanto tempo aqui dentro. Agora estou fodido MESMO. O vidro está todo rachado, e eles vão me pegar.

Eles sempre foram muitos, e sempre estiveram lá fora. Agora sabem que estou vivo e estão prestes a entrar no meu refúgio. Querem me tornar um deles – pelo menos é o que dizem nas estórias. Do meu ponto de vista este foi um dos elos fracos que fodeu com a humanidade, porque evidentemente não é bem assim: eles querem me almoçar, não almoçar comigo.  

Me lembrei da 70ª estrofe do Hávamál - tradução de Hollander. Aliás, não foi muito como se eu tivesse me lembrado: ela surgiu na minha frente como se um holofote tivesse sido aceso na minha cara, e um alarme de incêndio tivesse disparado dentro dos meus ouvidos ao mesmo tempo:

"Sempre é melhor estar vivo. O vivo pode cuidar de sua criação. Fogo eu vi acalentando a um homem endinheirado. Com um cadáver frio em sua porta"

As palavras do altíssimo fazem meu estômago queimar, ou talvez seja o Jägermeister lutando para não ser vomitado. Com a mão esquerda, pego a valise com os mantimentos que restam. A mão direita encontra o cabo do machado, e o segura com firmeza. Com a melhor bicuda que meu pé já desferiu, eu me livro da porra do carrinho de compras vazio – que bosta de idéia foi essa? O mundo se acabando e você sai pra fazer COMPRAS? Vejo uma parede no fim da loja, e corro para ela com o machado pronto para derrubar.
Agora sou eu quem está urrando, seus filhos da puta.

O machado desce com força e se crava na parede. Algo se rompe do outro lado, e tudo se quebra ao mesmo tempo: as paredes de vidro, as paredes de plástico e compensado, as estantes com alguma merda meio liquida que começa a vazar pelo rasgo que abri com o machado. A segunda melhor bicuda de todos os tempos termina o serviço, e a porra toda vai abaixo.

EU TENHO UMA CHANCE, PORRA!

E ela estava ali o tempo todo. Tudo se quebra ao mesmo tempo: o vidro se estilhaça para todos os lados, e os primeiros desgraçados começam a cambalear para dentro da loja. A parede cede, e o barulho de mil latas caindo do outro lado anuncia a minha chegada. Que porra de lugar será esse? Eu abro caminho com o meu machado em meio ao caos estabelecido - mas agora sou eu quem o estabelece. Se for pra ser desse jeito, então que se foda. 

Saio atropelando tudo, pisando sobre pedaços de compensado e lubrificante de motor, derrubando outra estante que estava no meu caminho. O sol atravessa outra porta de vidro, mas os escrotos já sabem por onde entrar – eles só têm que seguir fluxo.

Eu vejo um monte de coisas, mas só posso enxergar a saída. Eu PRECISO sair daqui. Meus olhos vêem produtos automotivos por todos os lados, mas também vejo as primeiras criaturas tropeçando pela abertura que criei, enquanto arranco as dobradiças da entrada a golpes de machado. Um. Dois. Feito!
Eles estão vindo me pegar, mas vou pegá-los primeiro. O machado está na valise, que eu jogo por cima dos ombros. Encaro o defunto que acaba de se erguer no meio dos destroços espalhados. Minha mão direita encontra uma lata de spray de tinta automotiva cor prata. Com a esquerda eu acendo meu isqueiro. Ainda não... Mais um pouco e...

Tudo queima.

Com um jato de fogo saído de minhas mãos justapostas, eu incinero o primeiro filho da puta. Ele para por um instante segurando a cabeça em chamas entre as mãos, e então começa a se contorcer e a soprar um chiado nojento através de um buraco entre suas costelas. Eu queimo os outros também, e eles também gritam através de seus buracos podres. Em questão de segundos, o chão do lugar começa a queimar. O fogo se espalha rápido pra caralho, e em um minuto a loja toda está em chamas.
Tudo queima - mas suplementos automotivos queimam melhor.
Derrubo a porta de vidro, que se espalha numa miríade de cacos pelo chão. Preciso sair daqui.

[...]

Próximo ao topo de uma rua afastada, eu ouço as chamas alcançando as bombas de combustível do posto. O estrondo é tão forte que poderia ter me lançado no chão, se eu não estivesse esperando por ele. O telhado do posto voa pelos ares. As janelas dos prédios ao redor se partem com a pressão.
Sinto o bafo quente da morte. Hoje não.
Acendo um cigarro, e contemplo a coluna de fogo e fumaça negra que arde em meio aos edifícios.

Tudo queima.