quinta-feira, 26 de julho de 2012

Mar Desmorto, II




O principal cruzamento da cidade se converteu em uma ilha de automóveis batidos ou abandonados às pressas logo nos primeiros dias do apocalipse. Hoje, três anos depois, eles são a prova arqueológica de que as regras da civilização sucumbiram à selvageria longamente reprimida da nossa espécie. Em fuga desesperada, as  pessoas abandonaram qualquer noção de equidade ou cooperação. A lei do mais forte prevaleceu, e, escravas dessa regra, as sociedades humanas foram devoradas por si mesmas.

Carros, ônibus e caminhões se entulham no coração viário da cidade: e em todas as principais rodovias, pelo que soubemos antes das estações de rádio caírem. Eram artérias entupidas, através das quais nada fluiu, e todos os que seguiram o plano de evacuação ditado pelo Governo Provisório tiveram que abandonar os veículos ou morreram em seus carros.

"... mantenham seus veículos abastecidos e dirijam até o abrigo mais próximo. Todos os que se refugiarem nos abrigos receberão alimento, agasalho e uma dose do soro imunizante. Todos devem deixar as suas casas imediatamente. Lembre-se: não serão admitidos animais de estimação..."

Não havia espaço para todo mundo. Não havia espaço nos hospitais. Não havia espaço para mais ninguém nos abrigos improvisados nas escolas e estádios, tampouco nas "zonas de segurança" organizadas pelas Forças Armadas. Logo, também não haveria comida, e as pessoas começariam a lutar entre si. Quando os mais fracos se transformaram na multidão dos mortos-vivos, os mais fortes já estavam reduzidos à fome ou ao canibalismo. No fim, os que não foram mordidos pelos zumbis morreram comidos por seus concidadãos.
  
***

A horda dos desmortos avança como uma onda que toma ambas as avenidas. Eles fogem da pira colossal que engole a cidade. Continuo subindo pelos chassis, tentando chegar ao centro da ilha, onde talvez demore mais tempo até ser devorado. Ainda sem acreditar, vejo a imensa máquina metálica arrastando carros e rompendo a maré desmorta com seus para-choques e placas de aço, suplantando os gritos hediondos com a buzina de cargueiro. Quatro faróis de milha fixados no teto da cabine de carreta iluminam a dianteira, enquanto dois holofotes móveis na carroceria vasculham as laterais.

Só que eles estão longe pra caralho. O que vou fazer é algo desesperado, mas não há tempo para ponderações: eu preciso arriscar, e minha melhor chance está nos Cienfuegos Maggia que trago na valise.  

Em alguns segundos começam os estouros. Seis tiros de chamas amarelas, vermelhas e azuis brilham no céu escuro - mas o barulho e a pirotecnia atiçam os mortos-vivos, que agora se arrastam por entre os carros na minha direção. Talvez minha atitude impulsiva tenha sido mais do que vã - talvez tenha sido minha estupidez final. Eles vão me deixar para trás.
***


Um dos holofotes me deixa cego por um instante. Ouço uma voz de comando, e a carreta muda o seu curso, esmagando brutalmente os desmortos contra as carrocerias. Estou correndo o mais rápido que posso, mas eles ainda estão a cinquenta metros de distância. Continuo meu caminho por entre os carros abandonados, agora mais espaçados, evitando ao máximo tocar o chão - zumbis mutilados tem uma predileção por se esconder debaixo dos veículos. A buzina soa impaciente, mas estou quase chegando. Saco meu machado para correr os últimos dez metros pelo asfalto, pois há vários deles no meu caminho. Tomo um último fôlego enquanto traço mentalmente minha rota e determino o meu curso de ação.  

A carroceria é alta e reforçada com chapas de aço, e na parte de dentro é  estruturada por uma espécie de gaiola montada com barras de metal. É uma carroceria curta, porem elevada, montada sobre um único eixo e adaptada à enorme cabine de scania. Os desmortos se aglomeram batendo com os punhos cerrados no metal, mas dois homens usando armas semelhantes a roçadeiras reduzem os zumbis que se aproximam a meras carcaças esquartejadas no asfalto. O mais alto deles, vestindo os farrapos de uma farda do exército, desce para o chão e vem abrindo um círculo de carnificina e vísceras espalhadas. Eu corro em sua direção derrubando os desmortos no meu caminho, lutando desesperadamente para chegar até a escada de metal soldada na lateral da carroceria.


***

Subo rapidamente, com o veículo em movimento, e estendo a mão para ajudar o militar com a roçadeira letal. Antes que eu consiga agradecer pela minha vida, sou cercado por dois homens de aparência hostil.

Um deles é negro e inflexível, com a face dura e a respiração pesada. Ele se aproxima com um cano de ferro nas mãos. O outro é caucasiano, tem os cabelos raspados e veste uma farda; este vem com um olhar maligno e com os punhos cerrados. Levanto a mão para saudá-los, mas o homem em traje militar me recebe com um soco no fígado.

__ Tirem as armas dele.  

Enquanto sou rendido e desarmado, a mulher que deu a ordem surge entre os dois. Ela deve ter pouco mais de vinte anos, e veste uma jaqueta do exército grande demais para o seu tamanho. Apesar de ter a pele e o corpo delicado de menina bem nascida, agora seu semblante está marcado com as indeléveis cicatrizes dos que sobreviveram ao fim da própria espécie.

A carreta dá solavancos enquanto abre caminho entre os mortos. Todos se seguram nas barras da gaiola de ferro - há mais quatro pessoas no fundo da carroceria, além de outro soldado, vestido com colete à prova de balas e manejando outra arma-roçadeira em seu posto de combate. O homem que me resgatou também retorna ao seu posto, ignorando os demais, enquanto eu tomo fôlego para responder à enxurrada de perguntas da mulher. Antes de receber outro estimulante murro no fígado, sou salvo pela intervenção de um cavalheiro com a voz clara e bizarramente tranquila.
 .  
__ Soltem ele. Miranda, eu e o Dr. Sérgio assumiremos a partir daqui. Vocês dois podem retornar os seus postos.

O homem de pedra obedece imediatamente e assume um dos holofotes, mas o soldado caucasiano hesita por um instante, me encarando. Sustento seu olhar maligno, e vejo nele uma raiva sem freios. Mais tarde terei que pensar em uma maneira de lidar com ele. Aí está um homem que tem sede de sangue.

 __ Pedro, eu e o Dr. Sérgio nos encarregaremos do recém-chegado. Retorne ao seu posto.

O soldado obedece, diante do sorriso de aprovação daquele que se aproxima.

É um cavalheiro de baixa estatura e de pele parda, beirando os cinquenta anos. Tem os cabelos e a barba bem aparados, e está trajado com uma camisa de botões bastante limpa, embora amarrotada e um tanto sofrida. Seus gestos são contidos, a fala é pausada. Ele parece absurdamente NORMAL - exceto pelos olhos, que quase não piscam. O outro - a quem se referiu como Dr. Sérgio - é o exato oposto: tem aspecto sujo e desgrenhado.

__ Desculpe meus companheiros, eles não dormem há algum tempo e estão bastante nervosos.
__ Eu notei.
__ Eu me chamo João Paulo, pastor de almas e servo de Cristo. Qual é o seu nome?

Por um instante permaneço mudo, com a mente vagando por sendas estranhas. Os olhos fixos do pastor vasculham a minha alma.

__Diga, filho. Qual é o seu nome?

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Mar Desmorto


 
Estou completamente paralisado, com as pernas e o maxilar travados de terror. Nunca vi tantos assim. A cacofonia produzida por mil traquéias decompostas é como uma onda que se agiganta e vai inundando toda a cidade com uivos e gemidos inumanos. Na verdade, nenhum animal vivo poderia produzir um som tão prolongado e doloroso.





Uns gemem, outros rosnam, mas os piores são os que gritam. O som rasgado e agudo explodindo cheio de ódio atrai os outros, e depois mais outros, que replicam os gritos dos primeiros, de modo que agora são milhares de desmortos subindo a rua larga em meio aos veículos abandonados. É como se o mar avançasse sobre a terra, um mar de carne podre, garras e dentes infectos.

Eles estão em perpétuo sofrimento. Condenados a vagar com os membros semi-rígidos, a cambalear pelas cidades onde antes habitavam - corpos e almas dilaceradas. Não estão nem vivos, nem mortos, mas continuam a vagar como criaturas grotescas, como se ainda fossem o que já não são mais. 

Não confio mais que eu mesmo pertenço ao mundo dos vivos. De fato, a fumaça negra que encobre os últimos raios do sol são presságios de morte. A fuligem do incêndio flutua etérea e se espalha no ar quente, criando uma atmosfera de desespero e irrealidade. Mas este não é um simples pesadelo: é o pior dos pesadelos tornado real.

BUUUMM!!!

Súbito, uma explosão me acorda do devaneio. Um bujão de gás explodiu em um dos prédios, projetando uma língua de fogo e de objetos flamejantes pela janela. Outras explosões seguem a primeira, e eu acordo na sacada do sobrado condenado, cercado por um exército de mortos-vivos em meio a um incêndio colossal. Com as mãos tremendo, procuro um cigarro e o acendo.

Seria um destino ainda pior morrer com o maço tão cheio.

O ar começa a ficar mais quente e mais pesado, os primeiros desmortos já foram engolidos pelas chamas. Passo as alças da valise sobre o ombro, cruzando-a no peito, calculando a melhor forma de distribuir o peso sobre as pernas. O machado está preso no cinto, e a escopeta está no lado oposto. Termino o cigarro e dou uma tragada profunda na bombinha de Aerolin, e sinto a respiração fácil enquanto o coração dispara. Tomo um último fôlego antes de saltar. 

***

Foi um salto aterrador.

Na hora do salto, esqueci a regra fundamental de nunca olhar para baixo. Vi os corpos desfigurados se contorcendo na tentativa de me alcançar, com dezenas de braços e pernas faltando. Eles são uma legião com as vísceras expostas, mutilados uns pelos outros - e unidos pela mesma fome insaciável. Suas bocas se arreganham enquanto eles se amontoam abaixo de mim. Senti quando um deles agarrou meu tornozelo com a mão fria e começou a me puxar.

Também senti o ar desaparecer quando bati com o diafragma contra a marquise de concreto, mas ainda tive fôlego o bastante para impulsionar o corpo para cima e me afastar das mãos gélidas da morte. Tudo o que perdi foi meu tênis de corrida. Hoje à noite eu verei a estrela da minha boa sorte brilhar um pouco mais pálida.

***

Não há tempo para repor as energias. Preciso continuar correndo para ter uma chance de sobreviver.

O sol se põe às minhas costas, eclipsado pela fuligem e pela fumaça. A maré dos mortos vai enchendo a rua na direção contrária à do fogo, e eles vão se empurrando uns por cima dos outros. Os mortos cambaleiam o mais rápido que podem, mas eu sou ainda mais rápido.Vou correndo e saltando por cima das marquises, e assim deixo o grosso da massa desmorta para trás. Mal consigo sentir as pernas, mal vejo onde estou pisando: o chão some sob os meus pés. Salto uma viga por puro instinto, e vejo a parede de um prédio crescendo à minha frente.

Terei que enfrentá-los no chão.

Saco o machado e pulo na  carroceria de um caminhão abandonado. Depois salto outra vez, arrebentando a cabeça do primeiro zumbi antes de tocar o asfalto com os dois pés.

Outros se aproxima de mim pelas costas, e o que está mais próximo vem com a língua pendendo abaixo do queixo e com as entranhas à mostra, ocultas apenas por uma obscena gravata manchada de sangue. Este eu derrubo com um coice, enquanto tomo a dianteira e recomeço minha corrida desesperada pela vida. Um policial usando um traje de batalhão de choque se coloca no meu caminho, ainda com o escudo preso ao braço que não foi devorado. O pescoço, no entanto, está desprotegido, e eu o parto com um golpe usando ambas as mãos. O próximo desmorto se aproxima com os passos vacilantes, e eu o derrubo com um golpe lateral para não diminuir a marcha. Se reduzir a velocidade, serei engolfado pela onda desmorta e tragado para as profundezas do seu mundo.

Eles vem por todos os lados, mas são apenas algumas dezenas. Vou deixando a maré para trás. Um deles agarra o meu poncho, e a garra continua presa mesmo depois que a separo do corpo. A garra sobe pelo poncho em direção ao meu pescoço, como uma aranha macabra capaz de me matar com uma única picada. Me livro dela apenas alguns instantes antes de realizar o seu intento, e acabo me chocando contra uma montanha de carne podre.

O desmorto gigantesco continua de pé, enquanto eu caio sentado no chão. Ele avança com o corpo inchado e os braços obesos em direção a minha garganta. Outros desmortos se aproximam pelas costas com uma rapidez inesperada, talvez animados pela minha queda e morte iminente. Dois zumbis me cercam pela direita. Eu só tenho uma possibilidade de fuga.

Sem me deter mais que um instante no chão, eu rolo para a esquerda e me levanto golpeando o monstro de carne intumescida na altura das costelas. A carne do abdômen se rompe num rasgo surpreendente quando os gases da putrefação se expandem, espalhando as tripas da aberração pelo asfalto. Abro caminho usando os cotovelos e girando o machado em todas as direções, e os mortos vão caindo despedaçados pela ferramenta fiel. Três deles se voltam tentando barrar a minha fuga, então saco a escopeta com a mão esquerda e varro o  caminho com um leque de chumbo.  

BLAM!
       BLAM! 

A rua termina em um cruzamento bloqueado por dezenas de carros abandonados às pressas na avenida central da cidade. Subo no chassis de um Opala e confirmo minha triste suspeita: os mortos vem de todas as direções. À minha frente, porém, vejo um segundo sol branco nascendo em meio a escuridão e ao oceano de cadávers, quebrando-os no meio e rasgando-os como um navio que corta as ondas. O som da buzina de cargueiro provoca a fúria dos desmortos, que gritam em resposta com um ódio que se propaga em todas as direções.

terça-feira, 17 de julho de 2012

A Casa de Virgínia Ortega, IV





Enquanto termino o cigarro e observo a fogueira gigante avançando sobre os prédios, tenho um pensamento desalentador: o fogo não vai demorar a tomar a parte baixa da rua, e terei que lidar com a multidão de desmortos que fogem do fogo na minha direção. Minhas chances de sobrevivência vão se reduzindo minuto a minuto, enquanto os mortos cambaleiam para fora dos edifícios no entorno do sobrado.

A valise com meus suprimentos está toda furada pela rebarba dos tiros de munição flechette, ensopada de sangue e de alguma outra coisa que vaza do interior. Infelizmente, é tudo o que tenho para transportar os víveres que possuo. Apesar de esculhambada e cheia de furos, manter esta velha mala de mão ainda é melhor do que andar por aí com uma trouxa ou a porra de um carrinho de compras.

Abro a valise para acomodar o meu saque. O interior está todo lambuzado de calda de pêssego e tinta prateada - uma das latas de spray explodiu ao ser perfurada pelo chumbo. Não há tempo para contabilizar os estragos.

Preciso ser rápido. A multidão de desmortos está aumentando.

***

A porta que dá acesso à biblioteca está com o ferrolho destrancado, o que me faz adivinhar uma armadilha. Que tipo de maldade me aguarda do outro lado é algo que não posso saber, mas os eflúvios malignos estão por toda parte, e escapam pelas frestas. Posso sentir o perigo, mas não tenho tempo para tomar muitas precauções.

[O Homem que está de pé ante uma porta estranha deve ser cauteloso
antes de cruza-la, esteja atento:
Quem sabe de antemão que inimigos podem estar
 esperando por ele na entrada?]

Eu preciso encontrar o livro.

De novo repito o procedimento de quebrar as dobradiças com o bom e velho machado. A porta cede, mas eu não ouço nenhum som além do zumbido das varejeiras que cortejam o cadáver de Virgínia a poucos metros da porta.

Sei muito pouco sobre o livro que procuro - Virgínia nunca me permitiu que o lesse. Sei apenas que o título é "Morte em vida no Haiti", e foi datilografado à maquina nas semanas seguintes ao Grande Terremoto naquele país. A obra nunca foi publicada, mas conheci Virgínia Ortega, e sei que não era o tipo de pessoa que deposita esperanças em esforços inúteis. O livro deve conter alguma informação crucial sobre a desgraça que devastou a humanidade.

Sei também que foi escrito por um professor de geologia que estava em missão no Haiti no início de 2010, quando aconteceu a catástrofe. Apesar das farpas de ironia que deixava escapar quanto a sanidade do professor, eu notava em sua inflexão vocal um profundo respeito pelo homem. Ela mencionou mais de uma vez  que o velho vivia recluso em um chalé isolado, cercado de relógios de sol construídos para medir horas que os homens comuns desconhecem.

***

O cômodo que abrigava a biblioteca está um caos. Milhares de páginas espalhadas pelo chão me contam que Mauro andou pesquisando literatura estrangeira. Uma pilha de merda seca e páginas sujas emboladas em um canto denotam que ele também vinha usando o cômodo como banheiro, e que, pelo menos, ainda tinha asseio o suficiente para limpar a bunda. O cheiro do mijo impregnado nos tacos de madeira do piso me golpeia como um soco no nariz, que começa a sangrar. 

[adanac manikoush qualalar]

Sinto minhas forças saindo do controle, o sangue escorrendo pela barba. Minha cabeça começa a doer como se estivesse se partindo ao meio. Sinto uma presença poderosa rompendo meu crânio de dentro pra fora.

A estante está repleta de livros, sobre diversos assuntos e em várias líguas. Eu duvido que vá encontrar o que estou procurando. Começo a revirar os livros,  desistindo de folheá-los. Vou procurando sem nenhuma ordem, e então começo a jogá-los de qualquer jeito sobre a escrivaninha. O desespero se infiltra através da minha pele, e eu começo a me descontrolar. 

  [arghuk denmar yosha manikoush]

Minha consciência está fendida. Não reconheço os pensamentos que me assaltam. Sinto minha força sucumbir diante da verdade cada vez mais palpável: eu jamais sairei desta casa condenada!

[ jagha qualalar manikoush] 

Com a súbita percepção da minha impotência, abandono meu autocontrole e me deixo levar pela raiva. Os livros restantes vão todos para o chão, assim como a estante, e eu  volto minha ira contra a escrivaninha cheia de papéis espalhados e objetos inúteis. Desço o machado com força sobre o móvel, e começo a destruí-lo num acesso de fúria rompante e desenfreada. O machado trabalha incansávelmente, depredando livros raros e madeira como se tivessem culpa e vida própria. Meus braços são governados pela força da loucura.
ONDE VOCÊ ESCONDEU A PORRA DO LIVRO!? ONDE ESTÁ A MERDA DO LIVRO SUA DESGRAÇADA!?!? ONDE ESTÁ...

O machado quebra algo que produz um som metálico, algo que se parte e cai no chão.

Uma melodia singela e cristalina pulveriza minha fúria, demolindo minha força de vontade e deixando um enorme buraco que se preenche de melancolia. O dique da ira se rompe em uma cascata de lágrimas que não posso controlar. A caixinha de música executa sua melodia perpétua pela última vez. 

Dentro da caixa, há uma chave dourada de aparência muito antiga. Eu a recolho por instinto e tento recobrar minha consciência.

***

Eu deixo a biblioteca trocando as pernas, desnorteado. Minha cabeça lateja como se tivesse levado uma paulada - o nariz ainda sangra. Eu pego a valise deixada junto à porta, mas a chave dourada eu guardo no bolso - o mesmo bolso onde encontro o mapa amassado e manchado de óleo. É minha última chance.

Contemplo o rosto deformado de Virgínia Ortega pela última vez, e só então percebo que a rigidez cadavérica imprimiu em sua face um último sorriso. Seco as lágrimas e o nariz, e me despeço dela em silêncio.

***

IIIIRRRRRCCGH!!!
                IIIIRRRCCGH!!!!!!
                    IIIIIIIRRRRCCCGGH!!!!!!!!!!!!!!



As critaturas recomeçam o seu grito infernal, e o som hediondo se multiplica em todas as direções, ganhando mais volume conforme outros monstros vão respondendo ao chamado, compondo um coro funesto.

Arrebento a porta dupla que leva à sacada com um chute frontal, e então eu contemplo o exército dos mortos.

São milhares de cadáveres subindo a rua, alguns ainda emergindo das chamas se amontoando com os braços estendidos na direção do balcão.

Eles são milhares. MILHARES!

terça-feira, 10 de julho de 2012

A Casa de Virgínia Ortega, III


Os desmortos vão se amontoando sob a janela - são oito até agora, e mais outros tantos do lado de fora do portão. Eles olham para mim e esticam os braços débeis, mas estou fora do seu alcance. Considerados individualmente, os desmortos não passam de cadáveres podres reanimados, meio burros e com um feroz apetite por carne humana. Eles não são mais perigosos agora do que eram quando vivos - só estão mais famintos. Não é  como se fossem rottweillers ou velociraptors - são apenas gente morta cambaleando como se estivesse bêbada.

Certo, eles tem uma mordida pestilenta capaz de transformar você em um horror em decomposição algumas horas depois de infectado -  mas pessoas vivas também são capazes de coisas desse tipo.

O que eu acho realmente de foder nesses zumbis é que eles destroem a sua vontade de viver de dentro pra fora. Se você fica olhando muito pra eles, ouvindo eles gemendo e gritando... você começa a sentir vontade de desistir, começa a imaginar como é ser um deles.  O que me deixa mais enojado é esse som gorgolejante que eles fazem, como se estivessem sufocando, engasgados no próprio muco...

Eu vomito pela janela.

Os desgraçados começaram a gritar de novo. Minha visão está turva. Preciso checar o perímetro e cuidar dos primeiros socorros - meu kit e meus medicamentos ficaram na valise, mas não há motivo para entrar em pânico ainda: conheço bem esta casa.

Recupero meu machado no chão. Como eu supunha pela marcação, esta é a única janela que não estava barrada por dentro - porém estava protegida por um bizarro guardião sem corpo. Este corredor dá acesso a quatro cômodos e um banheiro,  e termina em uma escada que leva à cozinha na parte dos fundos e à tabacaria. Preciso verificar cada um dos cômodos antes de me certificar que a casa está mesmo vazia, mas antes preciso cuidar dos meus ferimentos. Estou perdendo muito sangue.

                                                                                      ***

Sentado na privada, finalmente dou uma olhada melhor no braço. O corte foi fundo, e o torniquete está ensopado de sangue. Com uma tesoura e uma pinça eu removo o corpo estranho, que parece mais um punhal do que um caco de vidro. O sangue escorre, grosso e abundante. Lavo o ferimento com sabão e água da privada (a única disponível), e sinto a cabeça variando enquanto a água oxigenada fervilha na ferida. Espremo os últimos gramas de um tubo de xilocaína que Mauro gastou de forma animalesca, como ele mesmo gostava de anunciar  quando fazia. Ouço a voz de Virgínia Ortega me chamando no andar inferior. Tenho certeza de que devia dar uns pontos nesse corte, mas não tenho nenhuma idéia de como fazer isso sem  linha e agulha. Coloco uma gaze bem apertada e improviso uma tipóia. Vai ter que servir.

                                                                                      ***

O banheiro é velho e apertado, mas tem uma estapafurdia banheira de louça e um piso em lajotas pretas e brancas todo desfalcado. No móvel onde guardávamos os suprimentos de farmácia sobrou muito pouca coisa - água oxigenada, sabão de enxofre granado, fita isolante, alguns metros de gaze, band-aids e um frasco de vitaminas Centrum. Melhor que nada, mas, a menos que eles tenham ficado MUITO doentes, fugiram com uma porrada de analgésicos e antibióticos.

Prendo a necessaire no cinto, como uma pochete. Preciso checar o resto dos aposentos, pegar o que preciso, e encontrar alguma pista de meus companheiros de sobrevivência.

Volto ao corredor, e verifico que a primeira porta está trancada. Colo os ouvidos na madeira tentando identificar qualquer som, mas não ouço nada além do zumbido que venho escutando desde a explosão do posto de gasolina. A porta está trancada.

Com uma machadada certeira na tranca e um chute frontal, a porta se abre. O machado está  erguido para garantir a iniciativa contra qualquer coisa que saia mordendo lá de dentro.

Este é o quarto onde eles dormiam, e está completamente vazio, exceto pela mobília desgastada e pelos diversos maços e garrafas vazias. Dou uma conferida no guarda roupas, e pego uma das enormes camisas xadrez  que Mauro sempre usava. O fedor dele ainda está na roupa, mas é melhor do que passar frio. Aproveito para meter a tesoura em um velho cobertor puído e improvisar um novo poncho. O inverno está chegando.

Na mesa de cabeceira, um copo de água cheio de larvas de mosquito soa o alerta de que preciso sair daqui o quanto antes. O lugar está cheio de mal-agouro. Posso sentir no ar, assim como o cheiro de podridão. Um arrepio desce pela minha coluna, e a palma das mãos começa a se molhar com o suor dos maus presságios.

Retorno ao corredor.

A outra porta, onde funcionava o escritório da tabacaria, também está trancada. Colo meus ouvidos e ouço um chiado, como uma tv fora do ar. Desço o machado na tranca e abro caminho para eliminar qualquer coisa que surja pelos batentes. Aguardo um segundo e nada acontece. Adentro o cômodo caótico.

O escritório é pouco mais do que um cubículo fedendo a cigarros, cheio de poeira e arquivos mortos que se empilham até o teto na parede dos fundos. Centenas de folhas sujas de papel ofício e bitucas de cigarro estão espalhadas pelo chão, cheias de anotações com a péssima caligrafia de Mauro. O chiado vem de um antigo rádio Mitsubichi ligado com uma gambiarra a uma bateria de carro. Pego aleatoriamente uma folha de papel e leio a garatuja de Mauro:

17/03 - ninguém responde
18/03 - ninguém responde
19/03 - ninguém responde
20/03 - ninguém responde
21/03 - ninguém responde
22/03 - sinal  do exército. sobreviventes devem evacuar para o litoral
23/03 - sinal da cruz vermelha. sobreviventes devem evacuar para as dioceses e igrejas matrizes
24/03 - ninguém responde
25/03 - ninguém responde

A caligrafia está trêmula e borrada, e foi escrita com um lápis cuja ponta furou o papel e se quebrou em diversos lugares. Me aproximo devagar até a escrivaninha sobre a qual está o antigo rádio Mitsubichi, e vejo um destes headsets chineses com o plug meio que conectado na entrada das pilhas. Mais folhas de papel se espalham sobre a mesa.

05/11 - ninguém responde
06/11 - ninguém responde
07/11 - ninguém responde

Estas datas foram carimbadas com tinta vermelha. A caligrafia está tremida, muito pior do que as anteriores. Minha visão volta a escurecer - não tenho mais tempo. Acho que esse filho da puta ficou maluco ou algo pior lhes aconteceu.

Quando vou desligar o rádio, começo  a distinguir uma voz masculina no meio da estática

tchiiiiiiiiiiiiiii...tchiiiiii.... atenção sobreviventes na Zona da Mata e Região tchiiiiiiiiiiii.... Comboios de evacuação partindo para o Porto do Rio de Janeiro nas próximas 72 horas. Se você tem entre 14 e 50 anos, deve se dirigitchiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii... tchiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii... Os demais devem permanecer onde estão. Uma força de resgate será enviada ao seu endereço para posterior.... tchiiiii...Esta é uma mensagem do Exército Brasileiro. Atenção sobrevitchhhhhhhhhhhiiiiiii....tchiiiiiiii...

PORRA! ISSO FOI HÁ MAIS DE DOIS ANOS!

                                                                                  ***

Desligo o rádio, e planejo levá-lo comigo... só preciso recuperar minha valise e encontrar uma mochila. Deve haver algo assim em algum lugar.

Retorno ao corredor.

Resta vasculhar o meu antigo quarto e a biblioteca. Depois, um pulo na cozinha e na tabacaria do andar de baixo, recolher as provisões que sobraram e encontrar um jeito de sair daqui. Me aproximo da porta do cômodo em que eu dormia, e, quando colo o ouvido na madeira, vejo um dos símbolos de Virgínia Ortega gravado no batente


                                                                        


Sinto meu coração pesar. O cheiro de podridão está mais forte agora, e o perigo é iminente. Eu SEI disso. Eu posso SENTIR.

Com cuidado, me afasto da porta e coloco o lado pé-de-cabra do machado na dobradiça. É preciso mais força quando se faz isso com um braço só... Uso o meu peso e a primeira dobradiça cede. Depois, faço o mesmo com a segunda. A porta pende por uns segundos e depois cai.

BLAM! BLAM!

Ouço dois tiros. O cheiro de pólvora domina o quarto apertado. Eu me aproximo com cuidado e vejo a escopeta de cano serrado atada ao criado mudo, com os dois canos ainda fumegantes. Um fio de arame arrebentado conectava os gatilhos à maçaneta da porta, passando por um rolamento preso no teto.

O mecanismo foi elaborado por uma mente simples e brutal.

Foi por muito pouco.

O colchão onde eu costumava dormir está uma nojeira, e, pelo fedor, vinha sendo usado por Mauro nos dias em que não conseguia sobrepujar a força de Virgínia. Há um fedor de fezes e mijo seco vindo do guarda-roupas onde eu costumava guardar as minhas tralhas. Garrafas, latas de cerveja e maços vazios  espalhados pelo chão completam a cena. 

A escopeta de cano duplo está presa de modo precário no móvel, e eu a recolho satisfeito. Abro a gaveta, e encontro uma embalagem de papel acartonado quase cheia, com 10 cartuchos

"Imbel - munição .12 tipo flechette"

Recarrego a escopeta e prendo-a no cinto. Nunca usei uma destas, mas é uma arma de poucos segredos. É só quebrar o cano e colocar os cartuchos. O gatilho é automático e não há travas de segurança.




Simples e brutal

Talvez aquele porco egoísta tenha deixado mais alguns cartuchos, de maneira que decido vasculhar o móvel. A fedentina é forte, mas quando abro o armário, o choque do fedor e da imagem que vejo me fazem sacar a arma instintivamente e recuar.

Eu vomito no chão, e procuro uma parede  para me apoiar.

No meio de um monte de bosta e trapos mijados, vejo um boneco de pano com duas agulhas de tricô atravessadas na cabeça. O boneco está amarrado com um cachecol que me pertencia, e está sentado em um prato de merda ao lado de um maço de Lucky Strike fechado e uma garrafa de Almadém tinto. Eu me preparo pra dar um tiro de escopeta naquela profanação, mas contenho meu impulso. Não estou em posição de desperdiçar esse cabernet. Me aproximo do boneco medonho com cuidado e recolho o meu butim.

Há um papel pardo no fundo do armário, em que se pode ler numa caligrafia riscada com bosta e dedos.

                  
                  VOCÊ VAI MORRER SEU CANALHA
                  VOCÊ VAI PAGAR PELO QUE FEZ COM A GENTE


Tenho ânsias de vômito, mas não resta nada no estômago  para vomitar. Saio cambaleando do quarto imundo, tropeçando em minhas próprias pernas, a cabeça rodando sem conseguir respirar. Ignoro a porta da biblioteca e viro à esquerda em direção ao hall da escada, que também dá acesso ao balcão. Dobro o corredor apressado, e logo me arrependo da minha imprudência




Virginia Ortega está pendurada na ponta de uma corda.
As varejeiras esmeralda compõem a corte da rainha morta. 

Sinto  vontade de chorar.
Por um instante fico perdido, contemplando a face enegrecida de Virgínia devastada pelos animais invertebrados. A língua negra e inchada se projetando até o queixo de uma maneira obscena. Os olhos ressecados ainda estão abertos, e encontram os meus pela última vez.

Sinto vontade de chorar, mas não derramo uma única lágrima por Virgínia Ortega.
Estou desidratado.

                                                                                      ***

Desço a escada correndo, deixando para  trás o cadáver envolto na nuvem de varejeiras verdes que refletem a luz da janela. Vou até a cozinha atrás de um gole de água, mas encontro apenas uma lata de Kaiser esquecida atrás de um pacote de maizena, ambas vencidas.

A tabacaria se converteu numa extensão do quarto de Mauro, e tem o cheiro entranhado de milhares de cigarros e cerveja choca. O chão é uma imundície de bitucas, maços e garrafas espalhadas.

O filho da puta fumou tudo. TUDO!

Dou um chute irritado no balcão, e a caixa registradora se abre com um trinado de escárnio.
Quebro a vitrine com o machado, e começo a separar as coisas que ainda podem me servir.

- uma dúzia de isqueiros Zippo e latas de fluido original
- dois cachimbos: um rhodesian reto e um churchwarden vermelho
- duas caixas de Borkum Riff Black Cavendish
- uma "faca de caça":  sei que não posso confiar muito nela, mas a bainha magnética e a lâmina negra me convenceram.
- cinco tubos de super bonder "genérico".
- linha de pesca, e anzóis - que eu guardo na necessaire.
- um "dichavador-bússola" e uma seda smoking - just in case
- uma caixa de fogos de artifício "Cienfuegos Maggia", e uma de "Girândola 468 tiros" - seja lá o que for.

Não sei por que razão idiota as tabacarias brasileiras vendem equipamento de pesca. De uma maneira ou de outra, essa idiossincrasia comercial me serve bem - preciso recuperar a minha valise. Subo com a tralha toda de uma vez para evitar passar pelo cadáver de Virgínia novamente.

                                                                                      ***

Vou até o parapeito da janela por onde entrei, e abro a lata de Kaiser.  Por um instante, contemplo os mortos com seus braços débeis tentando me alcançar, enquanto gorgolejam sua nojeira infecta.

Está na hora de acabar com a palhaçada.

BLAM! BLAM!
     BLAM! BLAM!
          BLAM! BLAM!
              BLAM! BLAM! 



Sopro o cano da escopeta e carrego os dois últimos cartuchos.

Usando um anzol que poderia fisgar um pacu, preso ao fio de nailon mais grosso que encontrei, eu resgato a minha valise com cuidado do meio da carnificina. Os desmortos não passam de uma massa disforme de podridão, ossos e coágulos esparramados no chão. Os outros começam a gritar no portão.

Acendo um luckie e termino minha lata de Kaiser, enquanto as labaredas consomem o primeiro edifício do quarteirão.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

A Casa de Virgínia Ortega, II



Eu não quero acreditar no que eu vejo - mas é necessário.

Estou apoiado com a mão esquerda na parede e com os pés sobre um muro cheio de lodo e cacos de vidro. Estava pronto para escalar o parapeito e passar pela janela, quando a cabeça decomposta surgiu mordendo através do batente. O som do despertador infernal me desorienta, e tudo o que consigo fazer é jogar o meu peso para trás, tentando escapar dos dentes  e da morte certa. 

Meus pés escorregam no muro, e tento me equilibrar enquanto esquivo da cabeça que morde  furiosamente no ar. Eu escapo por muito pouco, mas pago um alto preço. Sinto uma dor lancinante que rasga o meu braço esquerdo, enquanto minha cabeça bate no chão molhado com um barulho surdo. Está tudo escuro.

***

Ouço o despertador tocando a quilômetros de distância.

Minha visão começa a voltar, destruindo a breve e reconfortante sensação de que despertava de um pesadelo. Sinto um calor do lado esquerdo do corpo, um calor fluido e viscoso que se esvai do meu antebraço inerte. De joelhos e ainda meio surdo, rasgo um pedaço da camisa para improvisar um torniquete. Um dente de vidro âmbar se projeta do ferimento que mina sangue escuro, mas não há tempo para removê-lo. Eu amarro o antebraço com vidro e tudo. Prendo a respiração e mordo uma ponta da camisa, enquanto dou um puxão vigoroso com a mão boa. 

AAAAHHHHRRGH!!!!

***
  
Um segundo grito responde ao meu grito de dor. É um urro inumano, cheio de fome e de fúria. Um urro que reverbera pelos prédios, e que é seguido por outros gritos vindos de todos os lados. Ao fundo, o despertador parece anunciar às criaturas desmortas que é hora do almoço. Minha única opção é confiar em minhas glândulas suprarrenais.

Me ponho de pé, e sinto os joelhos falhando. Não há tempo para dor. O primeiro desmorto já  está no portão. Com a cabeça girando, eu corro meus olhos em busca de uma saída, apenas para encontrar mais desmortos maltrapilhos descendo pela escada de barro na outra ponta da servidão de passagem.

Estou fodido demais pra acender meu último cigarro.

Cravo o machado no crânio do desmorto através das grades do portão, e puxo o corpo inerte contra as barras de ferro. Com muito custo e toda a força que resta em minhas pernas, subo o portão apenas alguns instantes antes do segundo cadáver alcançar as grades e começar a sacudí-las. 

Sem poder me apoiar na  parede, uso o machado como contrapeso e começo a caminhar entre os cacos de vidro, confiando minha vida ao débil equilíbrio que ele me proporciona. Caminho em direção à janela aberta, enquanto uma massa de desmortos desce do cortiço pela escadaria de barro.

Estou diante da janela, e vejo a cabeça decepada de um desmorto com cabelos compridos atados a uma corda. Ela continua mordendo o ar, com uma  expressão de ódio na face apodrecida. Meu braço direito começa a tremer. A visão fica embaçada, e sinto a morte se aproximando como uma vertigem.


[O cocho pode manejar um cavalo, o manco um rebanho.
O surdo pode ser um forte lutador.
Ser cego é melhor do que arder em uma pira:
Não há nada que um morto possa fazer]

TCHUK!

***

A cabeça do monstro se quebra em duas, destroçada pelo golpe de machado. Os desmortos avançam uns sobre os outros pela passagem, e estão prestes a me alcançar. Jogo a ferramenta primeiro, e depois pulo para alcançar o parapeito. Me agarro com a mão direita e me apoio usando o cotovelo do braço ferido, que irradia uma dor aguda que quase me faz apagar.

***

Finalmente, estou do lado de dentro. A janela dá ascesso a um corredor vazio, que termina em uma escada. Acendo meu último Derby enquanto observo os mortos se acumularem debaixo da janela. Meu sorriso seca nos lábios quando noto que a valise com todos os meus suprimentos ficou no chão quando eu caí.

PORRA!
Silencio o despertador com o meu pé.