sábado, 29 de dezembro de 2012

Hospital São Marcos




Minhas mãos ainda estão tremendo. Seguro a faca de aço negra como se ela também pudesse me trair - algumas armas são traiçoeiras por natureza, e eu sempre soube que essa é uma delas. As algemas ainda ferem meus pulsos, enquanto o Sargento Torres chega aos estertores da morte com sangue minando em abundância pelo rasgo profundo que abri entre suas costelas.

__ Seu desgraçado... eu... salvei... a sua vida... - a voz desaparece enquanto o sangue escorre de sua boca.
__ Até a vista, Torres. Você é esperado no Salão dos Eleitos.

E a faca negra pôs um fim ao sofrimento do Sargento. Limpei o sangue da lâmina e a devolvi à bainha magnética, oculta sobre o meu tornozelo. Não há espaço para o remorso - tenho minhas próprias costelas quebradas para me preocupar.

Enquanto vasculho o corpo em busca das chaves que libertarão minhas mãos, meu espírito divaga entre os mundos da dor e da fadiga extrema. Tento manter a calma e a frieza, mas meus olhos e minha pele estão queimando. Eu tenho febre, e os tentáculos do delírio começam a se enterrar profundamente no meu cérebro.

É quase certo que isso vai infeccionar. E se infeccionar, você já era
É quase certo que isso vai infeccionar.
É quase certo que...
...você já era 

*** 

Minha consciência vaga entre os mortos, que surgem ao meu redor e frutificam nos meus pesadelos. As touceiras de mato estouram o asfalto, enquanto arbustos retorcidos crescem nas marquises. Vidros quebrados e cortinas esvoaçam no meu delírio, e os números dos mortos vão aumentando. Acidentes. Janelas escancaradas para sempre, enquanto a mente oscila entre a consciência e a inconsciência, como o cambalear dos mortos ou dos marinheiros que finalmente chegam ao porto final. O horizonte está tomado pela fumaça negra, ardendo, ardendo, ardendo... o incêndio me consome por baixo da pele, enquanto os mortos vêm na minha direção, cambaleando... e eu cambaleio com eles, mais morto do que vivo. São delírios de febre, delírios de um morto-vivo.

IIIIIIRRRRRCCCCHHHH!!!!!!!!!!!
    IIIIIRRRCCCCCCHHHH!!!!!!!!!!
       IIIIIRRRRRCCCCCCHH!!!!!

Os desmortos são o meu pesadelo tornado real.
Agora todos eles estão vindo na minha direção. Saídos dos becos, das esquinas, alguns se aglomeram sobre as janelas quebradas esticando os braços impossíveis. Em poucos instantes, os mortos se agrupam em uma horda, e desejam minha vida mais do que eu jamais desejei. Hesito. Por um momento, quero que me apanhem... mas no instante seguinte, ouço meu próprio coração batendo acelerado, e isso fez toda a diferença.
Quero que morram. Quantas vezes for necessário. Quantas vezes for preciso matá-los.

Deixei o corpo do Sargento Torres para trás, levando sua mochila e tudo o que consegui carregar. Não há tempo para selecionar carga, ou para queimar o corpo como ele teria preferido. Até na morte o bom soldado me presta um último favor, contendo a primeira leva de desmortos famintos que se lança para despedaçar o cadáver ainda quente. Minha última visão foi a de um desmorto idoso num terno azul-marinho chafurdando a cabeça nas tripas do defunto expondo-lhes as entranhas, enquanto outros dois zumbis já bastante destroçados pelas intempéries abrem o abdomen para disputar os intestinos. Um quarto zumbi devora a sua cara, e esta foi a última vez que olhei para trás. Contive o vômito, e mal tive tempo de descarregar a pistola .40 que Torres me deixou como herança. Abri meu caminho num tiroteio que atingiu mortos a esmo, derrubando alguns deles enquanto corria pela minha vida. Os desmortos gritam, e seu ódio é tanto que rasga as gargantas.

São muitos, e sempre mais, saídos de todos os lugares de onde menos se pode esperar. Debaixo dos carros, de dentro dos becos e escadarias - um deles é empurrado contra uma janela e cai de um quarto andar, se espatifando contra a marquise... e ainda assim a massa disforme de carne podre e ossos partidos continua a se mover. Contá-los seria um erro a essa altura, mas já são mais de uma dezena. Começo a correr, mas o machado é pesado demais para o meu braço doente. Minha corrida é pela sobrevivência, e o tornozelo direito, sobre o qual escondo a faca negra, parece contaminado pela traição que emana da lâmina.

Eu tropecei.
Tropecei e caí.

Eu nem vi de onde saiu o desmorto que caiu comigo. Mas vi com uma clareza abominável os vermes em sua boca arreganhada, com um palmo de língua podre pendendo sobre meu rosto. A face abominável e sem olhos, com o crânio meio exposto... reduzida a pedaços de carne negra e fragmentos de osso pelas últimas balas da pistola. Uso a coronha para arrebentar o crânio de um segundo, e derrubo um terceiro com um chute - somente quando meu pé ficou enterrado no abdômem estufado me dei conta de que estava descalço. Outros três se aproximam pelas minhas costas, mas eu consegui escapar, como um animal que reaprende a usar as quatro patas. Corri pela minha vida, e me desesperei quando a consciência começou a deixar o meu corpo.

Minha visão periférica se apagava como se eu estivesse em um túnel. Mas eu ainda enxergava o suficiente para encontrar uma saída. Não olhei para trás, não olhei para os lados - não faz diferença, eles estão por toda parte. Chego ao topo da rua, e vejo as cores laranja e negra do incêndio devastador que eu comecei. A cidade foi engolida pelo fogo, que continuava avançando, lento e inexorável.

Há um muro, um muro alto com barras de ferro. Sobre o muro, vi os vultos que contemplavam as chamas quase imóveis. Eu corri em sua direção, arfando e lutando para não cair. Os mortos descem atrás de mim. Um imenso portão azul com grades barra a minha passagem. As letras se embaralham, mas consigo ler as palavras ocultas sob o lodo e os caracteres faltando: Hospital São Marcos

__ Abram! Abram! Pelos deuses, abram os portões!

Mas eles não se movem. Poucos são os que se dignam a me dirigir um olhar, tomados pelo fascínio das chamas. Um deles começa a gargalhar de maneira histérica, e aponta uma carabina na minha direção.

Pow! Tsi-tchak.

__ Porra! Abra o portão! Eu estou vivo!
__ Por pouco tempo! tempo! tempo! Hahahahaha!

Pow! Tsi-tchak.

Ergo os braços e começo a desfalecer, a vida finalmente cansada de habitar o corpo consumido pela febre. Eu me ajoelho, entregue à minha sorte final. Morrer pelo metal é uma sorte melhor do que ser devorado vivo.

__ Abra o portão imediatamente, Juliano! Eu disse para abri-lo AGORA!
__ Mas, ele já está morto! morto! morto! morto!
__ Abra!!! Você não não o reconhece? Abra de chofre ou demove-lo-ei do cargo de porteiro! Você não o reconhece?! É o meu bom amigo Jango!